Versos Ofídicos

Algumas linhas ofídicas (mas não ofensivas), venenosas (mas não mortais)...

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

A Revolução dos Pontos

Marquinhos havia feito sua melhor redação desde que ingressara no ensino médio. Era com muito orgulho que entregava à professora um fruto revestido de doçura e madureza, produzido pela macieira de sua própria imaginação. A professora, fria e indiferente, recebia as redações dos alunos. Assomado por uma inexplicável satisfação pessoal, Marquinhos foi entregar seu texto, pouco importando a reação daquele pedaço de pedra que lecionava há mais de 20 anos na mesma escola. Embora quisesse pedir atenção especial para sua obra, não o fez. Temia que a professora tentasse estragar aquele seu momento de contentamento e realização. A professora apenas colocou a folha de Marquinhos no meio das outras e descansou-as em sua pasta. E foi lá que aconteceu.
“O ser humano contra a natureza.” era o título da redação de Marquinhos, cujo tema dissertava exatamente sobre a ação humana no meio ambiente. O ponto incoativo da balbúrdia gramatical que ocorreria mais tarde na maleta da professora foi uma simples reclamação:
– Estou insatisfeitíssimo com essa posição. Onde já se viu, ponto em título?
A queixa do ponto final imprecisamente grafado no título era procedente, mas não agradou ao sempre mal-humorado ponto de interrogação que, com seu vozeirão profundo e inconfundível, mandou:
– O que você quer dizer com isso? Você se acha o máximo, não é? Será que você está indignado porque não está fechando o texto? Ou porque será corrigido pela professora e, por conseguinte, riscado de nossa companhia?
Tomando as dores do ponto final, alguns pontos continuativos intercederam a seu favor.
– Independente de onde somos colocados, somos todos unidade em texto.
– Exatamente! Nós, pontos finais, temos sempre a mesma grafia. Só as funções que se modificam a cada período escrito.
Esse último comentário indignou mais uma vez o indigesto ponto de interrogação, não por ter vindo de outro ponto final, mas de mais um ponto mal colocado.
– Você, que fala de função na posição blá blá blá no texto, já verificou a sua? – A cada vez que levantava uma questão polêmica, o ponto de interrogação se insuflava de satisfação, deixando transparecer propositadamente sua empáfia e fanfarronice. – Não seria mais cabível em seu lugar um ponto-e-vírgula?
A perspectiva de o ponto de interrogação estar certo assombrava aos outros pontos finais do texto. E, ainda, chamou para a discussão um sinal que estava até então alheio à confusão, até porque estava solitário no texto e, dada a pausa que denota e paciência que tem, não queria ver-se envolvido. Mas fora citado e agora era inevitável: não podia acovardar-se enquanto todos os itens da pontuação gramatical ardiam na fogueira das vaidades.
– Não cedam ao terrorismo da interrogação. Ela só existe para tentar nos confundir. Por mais que tentemos refutar, os pontos mais importantes são os finais mesmo!
O ponto de exclamação indignou-se por ver-se vomitado da boca do ponto-e-vírgula ao fim de seu pronunciamento. Aproveitou um pequeno ressentimento – recíproco – que guarda do ponto final por quase nunca deixá-lo fechar um texto, e entrou na discussão:
– Não dá! Ninguém vai levar a sério a palavra de um ponto que só anda acompanhado. Todos sabemos que sozinhos não passam de semi-inúteis pontos de pausa, que por si não significam nada! Não têm um objetivo em si. São nada!
Nesse momento as vírgulas, pontos mais recorrentes no texto de Marquinhos, se rebelaram contra a exclamação. Uma delas, a mais exaltada, fez-se ouvir por toda a pasta:
– Você, exclamação, é um ponto idiota, escrito em situações idiotas quando as pessoas se sentem como idiotas!
– Admiração, surpresa, entusiasmo, alegria... – O ponto de exclamação tinha certo ar de feminilidade, era tranqüilo quanto sarcástico.
– Ironia, desprezo, dor. É isso que você representa – as vírgulas estavam revoltadas.
O travessão e as aspas tentavam amenizar a situação, mas não eram ouvidos, sobretudo em função da acalorada, polêmica e violenta disputa verbal entre as vírgulas e a exclamação. Percebendo a algazarra no texto contíguo, um sinal de mais quis amenizar a discussão:
– Pessoal, vocês são da mesma ordem gramatical. Pra quê todo esse tumulto?
– Alguém o chamou aqui? O que você entende de gramática? Você não é da área matemática? Porque não volta pra seu território? Além do mais, você está em outro texto, ou estou errado? – A discussão estava rigorosamente ao gosto do ponto de interrogação, que agora apenas espiava afastado a gritaria que ele mesmo havia começado.
Os membros da pontuação que povoavam o escrito de Marquinhos tentavam a todo custo pular da página e investir uns contra os outros, de modo a terminar aquela deliberação na base do corpo a corpo generalizado. Impossibilitados de executar essa vontade e cansados de tanta altercação inconclusiva e sem chegar a um acordo comum, aos poucos, terminaram a discussão. Se bem que, de tempo em tempo, a lamúria de uma vírgula iracunda era ouvida pelos presentes. O ponto final situado no título assistiu sorumbático e cabisbaixo toda a porfia, sem palavras. Queria apenas ser um ponto final no final.
No outro dia, a professora entregou à Marquinhos sua redação. Disse-lhe que ateve-se precipuamente à idéia central do texto que, segundo ela, estava situada em algum lugar entre o excelente e excepcional. A pontuação ela deixou em segundo plano. Nota 10.
O texto acabava em reticências.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Festa no Céu

Dizem que, de tempo em tempo, ocorrem patuscas e garbosas festas no céu. Como tudo o que diz respeito aos assuntos divinos, tais comemorações também têm seu objetivo específico.

Certa vez o céu, de maneira súbita e inopinada – como é quando acontece – foi povoado de entes humanos, pessoas (ainda) de carne e osso. Sem cerimônia de apresentação: terminada a estada na Terra, viram-se em meio a santos e deidades de segundo escalão (já que o Chefe não permitiu a participação do alto clero) em um ambiente muito bem ornado aos caprichos dos deuses, com direito a chuva de graças e bem-aventuranças.

Havia um conjunto musical com trombetas distorcidas e harpas envenenadas, acompanhadas de percussão formada por vasos de alabastro e um piano que tocava por si, sem a participação direta de nenhum dos músicos-anjos presentes. Ainda assim, o som que a banda produzia ali, ao vivo, era ameno, delicado e prazeroso.

Era um salão aberto grande e pomposo, rodeado de nuvens por toda parte. O chão era composto de pétalas de rosas e, a cada passo que os dançantes executavam, o balé das rosas embelezavam o cenário glorioso e oferecia mais brio ao louvável balanço celestial. Havia uma tenda ostentosa em que era distribuído suco de maçã gratuitamente – batizado como suco do discernimento. Entretanto, o consumo desse líquido era terminantemente proibido entre os participantes. Ordens superiores. Ainda assim, a tenda estava sempre lá. O maître era eloqüente, sedutor e persuasivo, tinha um olhar dissimulado e sorriso sarcástico, limitado apenas ao canto direito da boca. Houve quem bebeu do sumo. Os convivas, mesmo sem saber por ora exato o porquê de estarem ali, gozavam de maneira desprendida aquele momento gáudio de celebração jubilosa. A aura divina que emanava do local contagiava a todos, deixando-os em pleno estado de graça e beatitude. O idioma que todos falavam era o mesmo, embora não pudessem julgar efetivamente qual era; talvez nem o conhecessem. Do mesmo modo, por mais que desviasse toda atenção para a fisionomia dos santos que os receberam para o evento mágico, ninguém seria capaz de defini-los ou descrevê-los.

Crianças nunca participavam de celebrações desse porte, regra que era seguida à risca nesse ensejo. Cada infante que chegava era encaminhado por uma escadaria de lanços cintilantes que culminava num facho de luz branca, onde os pequenos reverberavam até sumirem em meio ao clarão intraduzível. De quando em quando, indivíduos que já saíram da infância eram flagrados subindo a escada, mas com o consentimento oficial do Anfitrião. Há quem diga que essas pessoas, que cruzavam indiferentes o salão de festas, iam a Seu encontro. Diz-se, ainda, que há muitas pessoas não dignas de passar pelo salão celestial e são encaminhadas sem escalas para uma solenidade onde se executam rituais tétricos, lúgubres e macabros. Mas era longe dali. Ali era pura exaltação.

A considerar-se o tempo terreno, já deviam se passar mais de 8 horas correntes de festividade. E, de repente, a banda deu outro ritmo ao sublime evento divinal e começou a tocar um som pesado. Os convidados pouco mudaram suas atitudes, já que ali, por se situarem num plano supra-humano, não valiam as mesmas conveniências da falda terrestre. Perceberam que não eram mais de carne e osso. Alguns, como num passe de mágica, começavam a sumir. Sempre que isso acontecia, o garçom da tenda dava um pequeno sorriso com o canto direito da boca. Em geral, desapareciam os que haviam bebido do seu suco gratuito. Os santos começaram a se organizar em frente aos portões que guardavam a escadaria tremeluzente. Em sua maioria, eram membros da Ordem dos Paladinos de São Pedro. Com pergaminhos na mão, organizavam a fila e chamavam, um por um, os nomes dos que conseguiram permissão para encontrar com o Dono da festa. Foi um trabalho demorado e, por vezes, aborrecido por conta dos queixosos que não sumiram nem constavam nas listas. Mas, com a paciência que Deus lhes deu, contornavam a situação, explicando aos suplicantes que, se não estavam registrados na lista mas não sumiram, não haveria o que temer. Ficariam bem.

Então, findou-se mais uma festa no céu. Alguns acontecimentos ficaram incertos e inexplicados e os boatos continuam a correr indiscriminadamente. Dizem que as pessoas que desapareciam foram dançar no baile macabro. E que os que não entraram nem se escafederam permaneceram de carne e osso e voltaram para o lugar de onde vieram, para uma segunda chance.

E dizem que a próxima festa será na Terra.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Pequeno Nada Sobre o Medo

Todo animal é medroso. Em maior ou menor grau, o medo é condição intrínseca na vida de todos os animais, em especial do homo sapiens. As manifestações e reações é que são diferentes, dada a dimensão psicológica de cada indivíduo. Por exemplo: em uma situação perigosa, assomados pelo medo, uma cobra ataca, uma mulher chora, um homem corre (sem generalizações). Isso ilustra bem a discrepância entre o instinto animal e a razão animal.

Um dos principais medos do ser humano é o medo do desconhecido, o que fatalmente vai levá-lo ao mais temível dos medos, que é o medo da dor. Subverter uma ordem comodamente impregnada, tanto no aspecto individual quanto no aspecto coletivo, pode ser doloroso, portanto, tende-se mecanicamente a ficar estagnado sempre num mesmo ponto, num mesmo local, sem riscos, sem medo, sem dor. Nesses casos, ainda que o estado bem-estar e a felicidade existam, estão imersos na frugalidade da inércia.

O medo do conhecido – geralmente acompanhado de conclusões hipotéticas – também é um entrave na vida de qualquer pessoa. “Não vou sair porque é perigoso”; “Não vou conseguir fazer isso”; “Vai doer!”...

Os riscos são iminentes e, por vezes, inescapáveis. O pior de todos os medos é o medo de ter medo. Somos todos humanos. Todos somos animais. Medo não é defeito.

Quem tem cú tem medo.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Poesia on line

Os internautas, sobretudo os usuários contumazes de orkut e msn, gostam de tornar público seus gostos, sua personalidade, suas preferências. No orkut, em geral, fazem isso de maneira detalhada, preenchendo cada ítem do perfil minuciosamente. Já poucas pessoas utilizam o similar recurso do msn e, para revelar-se, valem-se de suas frases de apresentação.
Frases de apresentação no msn: verdadeiras poesias. Frases públicas, compartilhadas com centenas de pessoas. Sendo assim, ninguém se ofenderia em ver a sua publicada aqui nessa postagem.
Seguem algumas:
(P.S.: Cuidei para que cada frase fosse reproduzida rigorosamente como os "autores" deixaram em seus msn's; Por serem frases escritas por amigos, usei de um fisiologismo descabido e resolvi não comentar. Vai que algum não goste... Mas você pode fazê-lo e fique à vontade.)

"Decepção não mata,mais ajuda a viver"

"a vida e como os sonhos temos q sonhar para obtermos nossos objetivos.."

"A vida não acabou"

"quem inventou a saudade não sabe o quanto doi"

"Minha atitude depende da sua... Portanto, faça acontecer, que eu faço valer a pena"

"A força da tua inveja é a vontade de T meu susseso"

"Deus é 10, Romário é 11, Wisky é 12, 13 é Zagallo e passou dos 14 tou pegando tudo"

"Sou o internauta do amor!!!!!!!!!!!!!!!"

"pra vc ser imortal basta fazer uma coisa notável..."

"é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã"

"te amo te amo te amo + vc não me dá bola, vou me afogar num copinho de coca cola"

"A língua não é feita de aço, mas o efeito que ela causa é devastador"

"não leve a vida a sério, vc nasceu de uma gozada"

terça-feira, 9 de janeiro de 2007

A Decadência do Meio Termo

Certa vez na Universidade, ouvi de uma professora de Sociologia que natural e invariavelmente um ser humano tende a se colocar diante de uma situação-problema de acordo com a posição em que se encontra em relação a ela. Ou seja, mesmo que se tente evitar, sua subjetividade de sempre vai acompanhá-lo em suas decisões. A isso a professora chamou dissonância cognitiva: fechar os olhos para uma realidade lógica por conta da emoção.

Acho que ela tem razão. O que falta ao sujeito, não raras vezes, é refletir a respeito de cada dada situação e, assim, perceber que sempre existe uma outra opção.

O ser humano esbarra nas limitações de seus próprios conceitos sobre o que está em sua volta. Desconsidera as complexas variáveis intermediárias e as negações, polarizando as coisas mundanas em extremos e reduzindo a possibilidade de escolha. Em geral, os conceitos humanos são duais e dicotômicos: bem e mal; razão e emoção; estudo e lazer; trabalho e descanso; homem e mulher; verdade e mentira; Deus e Diabo...

Acredito que tais definições se reafirmam, ou antes, se completam: uma existe em decorrência da outra. Se assim for, fica mais fácil compreender as relações terrenas para além do siso individual, da simples opinião pessoal.

Se há um porquê para o sim, há também para o não. Antes de escolher pelo sim, que tal considerar o não? Fugir da catarata imputada pela dissonância cognitiva. Ainda que não mude a nossa decisão, o simples ato de observar por um outro ângulo ajuda a construir um mundo de pessoas mais éticas, justas, enfim, um mundo melhor. Depende de nós, afinal, não é o mundo que é o que é, nós é que somos o que somos.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Um Retrato do Espelho (exposto para o mundo)

Se todas as pessoas do mundo fossem iguais a mim o mundo não teria graça.

Se todos fossem iguais a mim, não haveria prioridade pra nada. Cada coisa no seu tempo;

Se todos os estudantes me imitassem, detestariam movimento estudantil, não pegariam no livro domingo e só produziriam seus trabalhos na véspera da data de entrega (se não fosse na segunda-feira);

Se todos os ativistas ou fundamentalistas de uma causa seguissem meu exemplo, seriam suficientemente humildes para assumir seus preconceitos e suficientemente tolerantes para guardá-los para si mesmos;

Se todos os pais fossem de meu séqüito, o mundo estaria estagnado na sua expansão populacional desde 1994 (tenho de contar a partir do ano da minha primeira polução noturna);

Se todos os torcedores me apoiassem, o São Paulo Futebol Clube teria a maior torcida do mundo. A segunda maior seria a do Santos de Caatiba;

Se os amantes enamorados do mundo fossem iguais a mim, ninguém saberia dizer a palavra certa na hora certa, nem escolher um presente adequado, nem lembraria datas que o outro considera importantes, nem mais um tanto de outros clichês que sustentam os mistérios da paixão;

Se os amigos fossem iguais a mim, o mundo seria formado por uma grande corrente de braços dados (pode não parecer às vezes, mas seria sim);

Se os escritores e intelectuais tivessem a minha disposição e talento, um livro demoraria mais de 24 anos para ser lançado.

Se fossem os matemáticos que me seguissem, não haveria prova dos 9 (ou haveria, mas os alunos não saberiam fazer);

Tenho outras virtudes e outros defeitos (e outras virtudes-defeito e vice-versa). Mas, enfim, se todos fossem iguais a mim, o mundo não teria graça.

I’m back, my friends!!!

Feliz Ano Novo!