Versos Ofídicos

Algumas linhas ofídicas (mas não ofensivas), venenosas (mas não mortais)...

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Prólogo de uma HQ de Ação (nunca terminada)

O texto abaixo é uma relíquia pessoal que data de 1999. Eu gostava muito de fimes de ação histórias em quadrinhos (HQ) de super-heróis e resolvi criar o meu. Preferia heróis mais humanos do que super, daí a busca por uma história com alguma verossimilhança.
Tenho de ser honesto e confessar que fiz algumas necessárias correções, mas nada que mudasse a estrutura original do texto. Abaixo, o prólogo da minha história em quadrinho.
P.S.: Ao ler, imagine a narração com uma voz gutural masculina, de uma rouquidão cavernosa e meio lenta. Torna a história mais interessante.
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Ah... Segunda promessa a cumprir: destruir esse maldito relógio. Certamente minha saudosa vovó não ficaria muito feliz, mas esse alarme infernal à essa hora todos os dias me deixa transtornado. Tive de me acostumar com a goteira do chuveiro, o barulho sincronizado e eqüidistante dos pingos. Depois, o movimento pendular desse marcador antigo e inútil pendurado na minha parede. Mais essa agora!!! Essa porcaria anda me deixando impaciente demais. Tenho que me controlar. O alarme parou. Ainda bem.
Preciso me levantar. Ai... como dói... Não é a dor física; essa é fácil suprimir. Apenas esse braço envolto em gesso não é capaz de me prender a esse leito. E é o braço esquerdo, não sou canhoto. Sair daqui será como tomar pirulito de criança. Mas o maior desafio ainda está por vir... como fui idiota... oh! Vanessa, meu amor... Mirella, meu bebê... Tenho de me vingar. Primeira promessa a cumprir.
Aquele telefonema... como fui estúpido! As lembranças me dilaceram alma. Tenho de ser forte. Deixe-me relembrar.
O telefone tocou. Antony, um vizinho que conheci havia pouco tempo, precisava de uma ajuda e solicitava minha presença. Não podia me furtar atender. Sua família estava sendo muito atenciosa desde o curto período que chegamos ali. Mas um problema de encanamento? Como um policial, afastado da repartição por questões de segurança depois de uma missão terrível, poderia ajudar? Fui, por uma questão de bom senso e reciprocidade. Vanessa e Mirella ficariam bem. Quem nos acharia ali? Idiota. No caminho à casa do vizinho tive um presságio de mau agouro: era noite, fazia um frio de doer, as ruas estavam completamente desertas e o silêncio reinava absoluto quando uma brisa, tão súbita quanto lúgubre, pairou sobre minha face abatida. Dei uma pequena parada, fixei a vista à frente, e continuei andando, vacilante. Alguma coisa acontecia. O portão da casa de Antony estava aberto. Havia um cheiro que me era conhecido no ar. Cheiro funéreo. Arrepiei-me e, vagarosamente, entrei. Tudo escuro, a porta cerrada, e eu, com uma chave inglesa e outra turquesa, as duas não mão esquerda. Abri a porta lentamente e procurei o interruptor. Acendi a luz. Merda... na sala revirada estava cacograficamente escrito na parede, em letras grandes, vermelhas: “Boa noite, Michael. E obrigado pela ajuda. Sonhe com os anjos. Dois anjos. Fausto” Minha casa... a moradia fornecida pela repartição... uma explosão... virou um cogumelo de poeira e fumaça. O clarão; por dois segundos, a noite virou dia. Eu gritava e corria em direção à rua quando vi um carro em alta velocidade. Tentei fugir, mas os homens foram rápidos e dispararam uma rajada sobre mim. Caí. Meus olhos cerravam-se ao passo que a poeira baixava. “Vanessa... Mirella...” Elas estão mortas agora.
Já dá pra me levantar. Vou buscar um por um. Johnny Madera; Teddy Toddys; Antony Burgase (se for esse seu nome); Fausto.
Minha primeira promessa a cumprir.
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Nunca aprendi a desenhar. Graças a Deus.

quinta-feira, 13 de julho de 2006

O Porque do Porquê

Era só um ponto de ônibus ali, próximo ao centro da cidade. O abre-fecha sincronizado das sinaleiras de trânsito, o vai-e-vem frenético e caótico dos automóveis, os pombos brancos, pretos, cinzas comendo milho e voando assustados no meio da praça, poucos transeuntes, estudantes e mendigos no largo. Para os dois homens sentados no banco de madeira, era só um ponto de ônibus. O silêncio entre os dois era gritante. Não existia nada mais que o silêncio.
Havia uns dez minutos estavam ali, imóveis, duas estátuas humanas sem assunto, sem um porquê.
Um moveu a cabeça lentamente em três piscadelas: na primeira olhou pro chão; na segunda, pra frente; na última, o céu. Contemplou-o por um breve instante, azul limpo e limpído, de um dia qualquer: hoje, amanhã ou depois talvez.
– Por quê – disse Um.
O Outro, ainda estático, respondeu num meneio involuntário:
– Por que o quê?
– Pronto: Porque o “porque o quê”?
O Outro virou o pescoço lentamente e encarou o Um numa diagonal superior quase-frontal.
– O quê?
– Porque o “porque o quê”?
– O que você quer saber?
– Só quero saber o porquê?
– O porquê de que? – o Outro voltou a olhar pra frente.
– Do porque.
– O que que isso tem que ver?
– Porque ninguém sabe responder?
– É... porquê?
– Eu pergunto porque aqui.
– Porquê?
– Porque eu que quero saber porquê.
– O que exatamente você quer saber?
– Eu quero um porquê.
– Um porquê. Um porquê de quê?
– Apenas um porquê.
– Quem é que pode saber?
– Não sei, mas tem de haver um porquê.
– Digo que não há porquê.
– Por que não haveria um porquê?
– E por que um porquê?
– Eu pergunto o porquê aqui!
– Porquê?
– Porque eu preciso saber.
– Olhe aí um porquê.
– Mas não é o porquê do porquê.
– O que quererá um porquê?
– É o que quero entender.
– E se não houver um porquê?
– Tudo que há há um porquê.
– Mas o que mesmo isso tem que ver?
– O que ver com quê?
– O porquê tem que ver com o quê?
– Não sei. Você não me disse porque.
– Você me perguntou porque...
– E você não soube responder.
– Porque não pude responder?
– Não sei te dizer. Mas tem um porquê.
– Porquê? Porquê? Porquê?
– Ah! Olhe aí: esse é o meu ônibus – disse o Um. – Foi um prazer conhecer você.
O Outro continuou ali, no banco do ponto até chegar seu ônibus imaginando o porque do porquê, esperando que alguém ali que pudesse lhe responder. O Um foi pra sua casa e pediu uma pizza grande de quatro queijos pra comer.
E depois daquele dia os dois nunca mais voltaram a se ver e seguiram com suas vidas normalmente. Mesmo sem saber porquê.