Versos Ofídicos

Algumas linhas ofídicas (mas não ofensivas), venenosas (mas não mortais)...

domingo, 3 de agosto de 2008

Made in Caatiba

Existe um chavão na parte da Psicologia que se ocupa com o comportamento humano que se comprova de maneira mais efetiva na prática do que em qualquer tratado teórico acerca: ‘ser jovem é complicado’. Ser jovem no século XXI é mais complicado ainda. Ser jovem, no século XXI e em Caatiba, então, nem se fala.
A fase comumente demarcada entre a infância e a vida adulta é agitada, turbulenta, em que os atores que a protagoniza não raro são assomados por inseguranças e incertezas, o que se reflete na volubilidade de seus pensamentos e atitudes. Pelo menos isso é o que dizem e é nisso que acreditam. Eu não acho isso, não.
O jovem sabe do que precisa, mas não quer. O pensamento juvenil está corrompido em face do carpe diem impregnado pela sociedade moderna. A família é importante, mas amigos da moda são mais. Ler livros é bom, mas Orkut e MSN são melhores. Suco é saudável, mas a Ice é a bebida da vez. E a escola? A escola é antes um ponto de encontro do que de construção de conhecimentos. É extremamente difícil transformar – ou reformar – um ser plenamente seduzido por esse pretendido mundo da diversão perene. Difícil, mas não impossível. E temos um exemplo bem próximo.
Gabriel Cunha – o Napa – quando aluno do ensino médio no CEMLMO não era definitivamente de comportamento que se poderia dizer exemplar (e digo isso porque fui professor dele por 2 anos), mas conjugava o verbo estudar com empenho. E, ao concluir o ciclo da educação básica, resolveu olhar pra frente. Os pais investiram em sua capacidade, ele acrescentou boas doses de força de vontade às suas habilidades desenvolvidas na escola – sobretudo com os números – e foi pra Salvador estudar em um cursinho desses preparatórios para o vestibular. Longe da família e dos amigos. Resolveu olhar pra frente. Resolveu estudar. Resultado: aprovado em honroso 2° lugar entre alunos oriundos de escola pública no curso de Engenharia Civil da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana).
Ele não é diferente de mim, de você ou do seu amigo aí pertinho de você nesse momento. Mas Gabriel teve um objetivo. Acho que falta ao jovem caatibense de uma maneira geral essa perspectiva. Falta querer ser mais do que operador de máquina de calçados. Falta não apenas perceber que pode ir além, mas sim ir. Entender que seu futuro já está em construção e que cada um é arquiteto da própria vida. Descobrir a dimensão da família e dos amigos nesse processo, mas principalmente assumir a dimensão pessoal nessa ascensão. Saber que o grande responsável pelo que você é, em última instância, é você.
Gabriel entra para um seleto grupo de pessoas made in Caatiba que ingressaram jovens numa Universidade pública e hoje já colhem os frutos da boa formação que tiveram, como Lígia, Hércules e Celinei. E mostra que para se alcançar um objetivo, não basta sonhar. Tem que acreditar e fazer.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Uma Noviça Nada Rebelde

Era um sonho de criança para ela levar uma vida benfazeja, dedicada exclusivamente à vontade do Senhor, ainda que para isso tivesse de ficar reclusa naquele airoso e pacífico convento, renegando aos caprichos seculares em prol do exercício da fraternidade cristã. Passara por quase toda a burocracia necessária para ser elevada ao status de noviça, sendo que, para que tal promoção se efetivasse, seria preciso passar pelo crivo da madre superiora, como era praxe naquele santuário feminino. E eis que estava ali, frente a frente à grande madre para a última sabatina.

A senhora segurava entre as mãos o relatório biográfico da candidata, o qual lia concentrada e com expressão sisuda e impassível. Estranhando o perfil da moça, resolveu começar por confirmar alguns dados que cuidava para não pré-julgar incongruentes.

- Nome?
- Bianca Rosemberg, madre.
Os muitos anos de hábito, oração e penitência, evidenciados nas rugas habilmente desenhadas pela caneta do tempo, condicionaram a madre de tal forma que ela nunca julgava ninguém por modos, aparência, trejeitos ou coisa que os valha. Mas, ao ouvir a designação da candidata não conseguiu frear um pensamento tão fugidio quanto pecaminoso: “nome de puta”.

- O que fazia da vida antes de resolver se dedicar à santimônia?
- Eu era, digamos... uma mulher de vida fácil.

A madre reparou que não tinha lido sobre isso na biografia da menina. Lembrou-se de Maria Madalena e, indiferente, perguntou sutil e pausadamente:

- Eu não entendi, senhorita.
- Então, madre: meu pai é um homem muito rico. Eu sempre tive tudo o que quis ao meu alcance, nunca tive nada por esforço e merecimento próprios. Cansei dessa exacerbação da vida material e resolvi me dedicar à espiritualidade, por isso estou aqui. Cansei das facilidades mundanas – o semblante de Bianca manifestava sincera puerícia. - Acho que as meninas colocaram tudo isso aí nesse papel, dê uma olhada.

“Bem, também não se tem certeza de que Maria Madalena é uma meretriz”, pensou a madre. Entretanto, depois da observação da pleiteante, ela resolveu que ia cuidar para não esboçar a possibilidade remota de talvez cometer uma gafe. E continuou a ler o escrito:

- Ensino médio completo... mini curso de música sacra... voluntária no grupo de crisma...
- Eu queria dar pro padre!

Dessa vez a madre soltou um incontido gemido de susto. Franziu a testa e, lentamente, desviou o olhar sério para Bianca. A candidata segurava um pequeno escapulário e um crucifixo nas mãos.

- Era do meu avô. Sabe, ele foi o único que me apoiou desde quando tomei essa decisão. Morreu há duas semanas – interrompeu sua fala por conta dos soluços da saudade. O olhar casto estava marejado.

A madre resolveu mudar de assunto por dois motivos: para que a menina se distraísse da lembrança gran-paterna e para que ela mesma se distraísse de eventuais pensamentos impuros, os quais tentava de todas as formas evitar. Começava a achar que a menina estava brincando com ela.

- A senhorita gosta de animais, Bianca?
- Sim, sim, gosto muito grande madre. Nesse sentido sempre fui incompreendida justamente por acharem que eu tenho um gosto excêntrico em se tratando de bichinhos. Mas, fazer o quê, né? O mundo animal não é só dos cachorros, gatos ou cavalos. Até reparei no pequeno zoológico ao fundo do nosso prédio. Fiquei encantada!

Na verdade, a madre não queria aquela garota dentre as outras. Em menos de dez minutos de conversa a menina lazarenta já tinha ressuscitado pensares impuros que a madre suprimia com sucesso havia 40 anos. Para conseguir um motivo, resolveu explorar o lado materialista da menina. Já que era filha de gente rica, haveria alguma necessidade do mundo concreto na qual considerasse indispensável, e era ali que a menina seria pega.

- Existe algo que a senhorita não tem e que gostaria de ter?
- Um pinto!

A madre, horrorizada, lançou um berro estridente que se fez ouvir por toda a comunidade conventual. Por um instante não soube como reagir à resposta de Bianca.

- Mas... como assim... minha filha... do que você está falando?
- Ué, madre. Não falávamos de animais? O Zoológico? Então... eu sei que isso não é normal, mas gosto dos galináceos. Há quem goste de gatos, cachorros. Eu gosto de galináceos: pinto, frangote no máximo. Passou daí está pronto pra panela. Temos que comer, né? Madre? Madre?

A madre superiora tinha se retirado. E depois daquele dia nenhuma das freiras nunca mais a viu nem teve notícias concretas sobre. O último cochicho é de que ela está se dedicando à meditação e vive no ostracismo num mosteiro medieval indiano.

Bianca Rosemberg foi ordenada noviça através de documento devidamente assinado pela madre. E desde então desempenha um importante e bonito trabalho solidário na comunidade.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Pequeno Nada Sobre a Humanidade

A casa era grande: 3 quartos, copa, cozinha, 2 banheiros, sala-de-estar (que não é mais do que uma sala) lavanderia e pequeno quintal nos fundos. Mas a pequenina barata, menos asquerosa do que desditosa, tinha que inventar de passar justamente sobre o tapete persa da sala da TV, cuja programação prendia a atenção de toda a família naquele morno início de tarde dominical. O inseto perambulava distraído e inocente pelo hall principal do lar Silveira quando deparou-se com a enorme sombra de um objeto voador não identificado que rumava célere e crescente em sua direção. Antes que pudesse esboçar reação de fuga, a ínfima baratinha foi terrivelmente esmagada pelo sapato 44 do dono da casa. A família, antes assustada com o aparecimento súbito e inopinado daquele ser extremamente nojento, estava agora aliviada por virem-se a salvo da ameaça do pequeno vertebrado de antenas. O patriarca emanou incontida satisfação ao ouvir o estalo do inseto atingido por sua certeira sapatada. Arrastou o pequeno defunto pra fora da sala e visão dos parentes. E todos riram de sua própria condição humana.

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Ele é dono de uma grande empresa do ramo de confecções, representante exclusivo das maiores e melhores franquias na cidade. Ascendeu rapidamente à condição de magnata, graças ao estrondoso sucesso de vendas que sua outrora lojinha alçou em 1 ano de atividade. Homem de poucos amigos, mas de muita influência, gerencia seu negócio sempre de acordo com as regras de administração que não raro sofre mutações cíclicas de forma a se adaptar frequentemente aos anseios e evoluções do mercado.
Chamou naquela tarde à sua sala Zacarias, o zelador, antigo funcionário do seu império cujas qualidades de dedicação e empenho no trabalho chamavam a atenção dos clientes e amigos de trabalho. Sempre tranqüilo e prestativo, Zacarias nunca havia contestado qualquer pedido do patrão e, pelo contrário, executava a mais penosa tarefa de bom grado. O patrão, que nunca o olhara nos olhos e mal dava-lhe bom dia, queria hoje falar-lhe pessoalmente. Zacarias pensava se tratar da atualização de sua carteira de trabalho e, claro, do aumento que o diretor do sindicato disse que ele tinha direito e que já tinha sido encaminhado ao patrão o pedido.
Pela primeira vez em 4 anos ele olhou nos olhos de Zacarias e disse, com voz firme e sem hesitação, que acabava de dispensá-lo de suas obrigações com a empresa alegando um reforma interna no grupo, contenção de gastos e que ele não respondia mais ao perfil de zelador que a empresa necessita. Antes que Zacarias pudesse apelar, ele pediu que se retirasse e passasse no RH para os acertos da demissão. Zacarias saiu triste, cabisbaixo, pensando em como dar a notícia para a mulher grávida e os dois pequenos filhos. E, aliviado, o patrão ria-se de sua condição humana.

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Acuado, os últimos sobreviventes do exército B esconderam-se estrategicamente nas ruínas de um casarão antigo, devastado pelo efeito produzido pelas armas de destruição em massa disparadas pela tropa militar A. Cerca de 400 combatentes A, cientes da localização do exército inimigo, investiram irracional e violentamente sobre os 40 ou 50 soldados acoitados sobre escombros da velha mansão. Em menos de 1 hora de batalha não havia mais alma viva dos combatentes B, enquanto a milícia “vencedora” comemorava as poucas baixas e o objetivo alcançado. O cabo correspondente tratou de informar os superiores o quanto antes o resultado do embate. A maioria absoluta dos soldados do exército A não sabia certo porque estavam ali. Mas todos celebravam e riam de sua condição humana.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Cid Moreira lê o direito de resposta de Brizola no JN

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A propósito do vídeo acima...

Uma cena antológica.

No dia 15 de Março de 1994, quem ligou a televisão na Rede Globo na hora do Jornal Nacional assistiu a algo, no mínimo, impressionante: Cid Moreira, figura mais representativa do telejornalismo brasileiro, maculava as Organizações Globo em seu próprio jornal. Tratava-se de um direito de resposta concedido a Leonel Brizola, que buscava desde fevereiro de 1992, quando veicularam que ele estava com “declínio da saúde mental” e “deprimente inaptidão administrativa”.

Vale a pena conferir.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

A Mala de Pandora*

Pandora arrumava-se vaidosamente a fim de estar bonita para o último dia de aula. Dentro em breve estaria na 8ª série e queria aproveitar todos os derradeiros momentos do ano letivo. Ajeitava seus pertences para encher a mala para, de lá mesmo da escola, partir para sua colônia de férias.
Separava roupas, remédio e bijouterias; vaidosa, não esqueceu seu batom e um pequeno espelho para satisfazer sua necessidade narcísica. Levaria também sua revista favorita, seu livro de cabeceira, seus documentos, caneta e papel para eventual anotação, além de uma agenda para começar a se programar para o próximo ano e dinheiro para suprir seus caprichos consumistas.
Qual não foi sua admiração quando, ao abrir a mala para enchê-la com seus objetos pessoais, uma luz branca reverberou bolsa afora expelindo abstrações que insuflaram o corpo e a alma de Pandora com sensações inexprimíveis. Amor, sabedoria, conhecimento, certeza... esperança. Antes que uma grande interrogação assomasse Pandora, ela lembrou-se com orgulho da professora Sofia, sua fonte de saber.
Tudo em ordem, partiu feliz em direção à escola.

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* Texto produzido em 13/02/2007 na oficina Desafios na Formação do Leitor, conduzida pela professora de Língua e Literatura da Redacta, Lana Sheila. O exercício foi um desafio oferecido por ela de escrever, em 10 minutos, um texto com as palavras destacadas, que haviam sido ditas pelos participantes da oficina quando perguntados sobre o que não deixariam de levar em uma viagem.

terça-feira, 30 de janeiro de 2007

A Revolução dos Pontos

Marquinhos havia feito sua melhor redação desde que ingressara no ensino médio. Era com muito orgulho que entregava à professora um fruto revestido de doçura e madureza, produzido pela macieira de sua própria imaginação. A professora, fria e indiferente, recebia as redações dos alunos. Assomado por uma inexplicável satisfação pessoal, Marquinhos foi entregar seu texto, pouco importando a reação daquele pedaço de pedra que lecionava há mais de 20 anos na mesma escola. Embora quisesse pedir atenção especial para sua obra, não o fez. Temia que a professora tentasse estragar aquele seu momento de contentamento e realização. A professora apenas colocou a folha de Marquinhos no meio das outras e descansou-as em sua pasta. E foi lá que aconteceu.
“O ser humano contra a natureza.” era o título da redação de Marquinhos, cujo tema dissertava exatamente sobre a ação humana no meio ambiente. O ponto incoativo da balbúrdia gramatical que ocorreria mais tarde na maleta da professora foi uma simples reclamação:
– Estou insatisfeitíssimo com essa posição. Onde já se viu, ponto em título?
A queixa do ponto final imprecisamente grafado no título era procedente, mas não agradou ao sempre mal-humorado ponto de interrogação que, com seu vozeirão profundo e inconfundível, mandou:
– O que você quer dizer com isso? Você se acha o máximo, não é? Será que você está indignado porque não está fechando o texto? Ou porque será corrigido pela professora e, por conseguinte, riscado de nossa companhia?
Tomando as dores do ponto final, alguns pontos continuativos intercederam a seu favor.
– Independente de onde somos colocados, somos todos unidade em texto.
– Exatamente! Nós, pontos finais, temos sempre a mesma grafia. Só as funções que se modificam a cada período escrito.
Esse último comentário indignou mais uma vez o indigesto ponto de interrogação, não por ter vindo de outro ponto final, mas de mais um ponto mal colocado.
– Você, que fala de função na posição blá blá blá no texto, já verificou a sua? – A cada vez que levantava uma questão polêmica, o ponto de interrogação se insuflava de satisfação, deixando transparecer propositadamente sua empáfia e fanfarronice. – Não seria mais cabível em seu lugar um ponto-e-vírgula?
A perspectiva de o ponto de interrogação estar certo assombrava aos outros pontos finais do texto. E, ainda, chamou para a discussão um sinal que estava até então alheio à confusão, até porque estava solitário no texto e, dada a pausa que denota e paciência que tem, não queria ver-se envolvido. Mas fora citado e agora era inevitável: não podia acovardar-se enquanto todos os itens da pontuação gramatical ardiam na fogueira das vaidades.
– Não cedam ao terrorismo da interrogação. Ela só existe para tentar nos confundir. Por mais que tentemos refutar, os pontos mais importantes são os finais mesmo!
O ponto de exclamação indignou-se por ver-se vomitado da boca do ponto-e-vírgula ao fim de seu pronunciamento. Aproveitou um pequeno ressentimento – recíproco – que guarda do ponto final por quase nunca deixá-lo fechar um texto, e entrou na discussão:
– Não dá! Ninguém vai levar a sério a palavra de um ponto que só anda acompanhado. Todos sabemos que sozinhos não passam de semi-inúteis pontos de pausa, que por si não significam nada! Não têm um objetivo em si. São nada!
Nesse momento as vírgulas, pontos mais recorrentes no texto de Marquinhos, se rebelaram contra a exclamação. Uma delas, a mais exaltada, fez-se ouvir por toda a pasta:
– Você, exclamação, é um ponto idiota, escrito em situações idiotas quando as pessoas se sentem como idiotas!
– Admiração, surpresa, entusiasmo, alegria... – O ponto de exclamação tinha certo ar de feminilidade, era tranqüilo quanto sarcástico.
– Ironia, desprezo, dor. É isso que você representa – as vírgulas estavam revoltadas.
O travessão e as aspas tentavam amenizar a situação, mas não eram ouvidos, sobretudo em função da acalorada, polêmica e violenta disputa verbal entre as vírgulas e a exclamação. Percebendo a algazarra no texto contíguo, um sinal de mais quis amenizar a discussão:
– Pessoal, vocês são da mesma ordem gramatical. Pra quê todo esse tumulto?
– Alguém o chamou aqui? O que você entende de gramática? Você não é da área matemática? Porque não volta pra seu território? Além do mais, você está em outro texto, ou estou errado? – A discussão estava rigorosamente ao gosto do ponto de interrogação, que agora apenas espiava afastado a gritaria que ele mesmo havia começado.
Os membros da pontuação que povoavam o escrito de Marquinhos tentavam a todo custo pular da página e investir uns contra os outros, de modo a terminar aquela deliberação na base do corpo a corpo generalizado. Impossibilitados de executar essa vontade e cansados de tanta altercação inconclusiva e sem chegar a um acordo comum, aos poucos, terminaram a discussão. Se bem que, de tempo em tempo, a lamúria de uma vírgula iracunda era ouvida pelos presentes. O ponto final situado no título assistiu sorumbático e cabisbaixo toda a porfia, sem palavras. Queria apenas ser um ponto final no final.
No outro dia, a professora entregou à Marquinhos sua redação. Disse-lhe que ateve-se precipuamente à idéia central do texto que, segundo ela, estava situada em algum lugar entre o excelente e excepcional. A pontuação ela deixou em segundo plano. Nota 10.
O texto acabava em reticências.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Festa no Céu

Dizem que, de tempo em tempo, ocorrem patuscas e garbosas festas no céu. Como tudo o que diz respeito aos assuntos divinos, tais comemorações também têm seu objetivo específico.

Certa vez o céu, de maneira súbita e inopinada – como é quando acontece – foi povoado de entes humanos, pessoas (ainda) de carne e osso. Sem cerimônia de apresentação: terminada a estada na Terra, viram-se em meio a santos e deidades de segundo escalão (já que o Chefe não permitiu a participação do alto clero) em um ambiente muito bem ornado aos caprichos dos deuses, com direito a chuva de graças e bem-aventuranças.

Havia um conjunto musical com trombetas distorcidas e harpas envenenadas, acompanhadas de percussão formada por vasos de alabastro e um piano que tocava por si, sem a participação direta de nenhum dos músicos-anjos presentes. Ainda assim, o som que a banda produzia ali, ao vivo, era ameno, delicado e prazeroso.

Era um salão aberto grande e pomposo, rodeado de nuvens por toda parte. O chão era composto de pétalas de rosas e, a cada passo que os dançantes executavam, o balé das rosas embelezavam o cenário glorioso e oferecia mais brio ao louvável balanço celestial. Havia uma tenda ostentosa em que era distribuído suco de maçã gratuitamente – batizado como suco do discernimento. Entretanto, o consumo desse líquido era terminantemente proibido entre os participantes. Ordens superiores. Ainda assim, a tenda estava sempre lá. O maître era eloqüente, sedutor e persuasivo, tinha um olhar dissimulado e sorriso sarcástico, limitado apenas ao canto direito da boca. Houve quem bebeu do sumo. Os convivas, mesmo sem saber por ora exato o porquê de estarem ali, gozavam de maneira desprendida aquele momento gáudio de celebração jubilosa. A aura divina que emanava do local contagiava a todos, deixando-os em pleno estado de graça e beatitude. O idioma que todos falavam era o mesmo, embora não pudessem julgar efetivamente qual era; talvez nem o conhecessem. Do mesmo modo, por mais que desviasse toda atenção para a fisionomia dos santos que os receberam para o evento mágico, ninguém seria capaz de defini-los ou descrevê-los.

Crianças nunca participavam de celebrações desse porte, regra que era seguida à risca nesse ensejo. Cada infante que chegava era encaminhado por uma escadaria de lanços cintilantes que culminava num facho de luz branca, onde os pequenos reverberavam até sumirem em meio ao clarão intraduzível. De quando em quando, indivíduos que já saíram da infância eram flagrados subindo a escada, mas com o consentimento oficial do Anfitrião. Há quem diga que essas pessoas, que cruzavam indiferentes o salão de festas, iam a Seu encontro. Diz-se, ainda, que há muitas pessoas não dignas de passar pelo salão celestial e são encaminhadas sem escalas para uma solenidade onde se executam rituais tétricos, lúgubres e macabros. Mas era longe dali. Ali era pura exaltação.

A considerar-se o tempo terreno, já deviam se passar mais de 8 horas correntes de festividade. E, de repente, a banda deu outro ritmo ao sublime evento divinal e começou a tocar um som pesado. Os convidados pouco mudaram suas atitudes, já que ali, por se situarem num plano supra-humano, não valiam as mesmas conveniências da falda terrestre. Perceberam que não eram mais de carne e osso. Alguns, como num passe de mágica, começavam a sumir. Sempre que isso acontecia, o garçom da tenda dava um pequeno sorriso com o canto direito da boca. Em geral, desapareciam os que haviam bebido do seu suco gratuito. Os santos começaram a se organizar em frente aos portões que guardavam a escadaria tremeluzente. Em sua maioria, eram membros da Ordem dos Paladinos de São Pedro. Com pergaminhos na mão, organizavam a fila e chamavam, um por um, os nomes dos que conseguiram permissão para encontrar com o Dono da festa. Foi um trabalho demorado e, por vezes, aborrecido por conta dos queixosos que não sumiram nem constavam nas listas. Mas, com a paciência que Deus lhes deu, contornavam a situação, explicando aos suplicantes que, se não estavam registrados na lista mas não sumiram, não haveria o que temer. Ficariam bem.

Então, findou-se mais uma festa no céu. Alguns acontecimentos ficaram incertos e inexplicados e os boatos continuam a correr indiscriminadamente. Dizem que as pessoas que desapareciam foram dançar no baile macabro. E que os que não entraram nem se escafederam permaneceram de carne e osso e voltaram para o lugar de onde vieram, para uma segunda chance.

E dizem que a próxima festa será na Terra.